
Dentre as várias manifestações da energia feminina no universo do Yoga, poucas são tão impactantes quanto Durgā, a Grande Mãe Cósmica. Seu nome significa literalmente “a que é difícil de atravessar” (dur = difícil; ga = ir ou atravessar), representando os aspectos da existência que desafiam, confrontam e, ao mesmo tempo, protegem.
Durgā é o aspecto feroz do amor. Não aquele amor que conforta por conveniência, mas aquele que remove véus, dissolve ilusões e desfaz o que impede a realização do Ser. Ela é a Śakti (Deusa) que simbolicamente destrói o ego (ahaṃkāra) por compaixão. Sua fúria é reservada aos que insistem em ignorar o caminho da consciência. Aos que se rendem ao processo de autotransformação, ela se mostra como a mãe protetora e amorosa.

Quem é Durgā?
Durgā é a personificação da força interior, da coragem, da proteção espiritual e da inteligência ativa da consciência. É uma das formas mais reverenciadas da Devī, a Deusa, especialmente nas tradições tântricas e védicas. Ela aparece com frequência nos Purāṇas, especialmente no Devī Māhātmyam, onde sua história é narrada como a da salvadora dos deuses frente aos demônios que ameaçavam a ordem cósmica.
Enquanto muitas manifestações da Śakti estão ligadas à nutrição, beleza e suavidade, Durgā nos lembra que o divino também se manifesta na fúria justa, na espada da verdade e na coragem de dizer “basta”.
O Mito: A Deusa que Surge Quando Nada Mais Dá Conta
O mito mais famoso sobre Durgā é sua batalha contra o demônio Mahīṣāsura. Esse ser havia recebido uma bênção que o tornava invencível contra qualquer homem ou deus. Arrogante e destrutivo, Mahīṣāsura tomou os céus e expulsou os deuses de seu trono.
Desesperados, os devas uniram suas forças e irradiaram sua energia luminosa — de cada um deles nasceu uma centelha, e dessas centelhas surgiu Durgā, armada com os instrumentos de todos os deuses: o tridente de Śiva, o disco de Viṣṇu, a lança de Skanda (Kumāra), o arco de Varuṇa, o machado de Indra, a clava de Yama, o lótus de Brahmā, entre outros.
A batalha durou nove dias. Ao final, Durgā matou Mahīṣāsura com um golpe certeiro. É por isso que, durante o Navarātri, o festival de nove noites, celebramos a força da Śakti em suas várias formas: Durgā, Lakṣmī e Sarasvatī — destruição, nutrição e sabedoria.
Iconografia
Na iconografia tradicional, Durgā é retratada com múltiplos braços (geralmente oito ou dez), cada um segurando uma arma ou símbolo divino. Ela cavalga um leão ou tigre, símbolo da coragem indomável, da soberania sobre os instintos e da firmeza de espírito.
Apesar das armas e da postura de combate, seu rosto permanece sereno e compassivo.
Essa é a marca de quem luta pelo dharma, a justiça universal: age com firmeza, mas com paz no coração.
Cada arma nas mãos de Durgā carrega um ensinamento simbólico. Elas representam qualidades que nós, praticantes, precisamos cultivar para atravessar os desafios internos — como o medo, o ego, o apego e a ilusão — e seguir o caminho do despertar.
Tridente (triśūla): rompe os três obstáculos mentais — ignorância (avidyā), ego (ahaṃkāra) e apego (rāga).
Espada (khadga): corta a ilusão (māyā) com discernimento e revela a verdade.
Arco e flecha: simbolizam foco, direção e intenção clara na ação.
Disco (cakra): representa a consciência desperta, o tempo cíclico e o poder transformador do espírito.
Concha (śaṅkha): emite o som primordial (Om), purificando e consagrando o espaço interno e externo — uma arma de proteção e consagração, mais do que de combate.
Durgā usa essas armas não para ferir, mas para libertar. São expressões arquetípicas das virtudes necessárias para atravessar a escuridão com coragem, sabedoria e compaixão.
Mantra para Durgā
O culto a Durgā é marcado por orações poderosas, muitas vezes utilizadas como escudos protetores contra medo, insegurança e energias densas.
Mantra mais conhecido:
ॐ दुं दुर्गायै नमःOm Dūṁ Durgāyai Namaḥ“
Om, reverência àquela que é Durgā, a Invencível.”
Esse mantra ativa o poder de proteção e força interior.
📖 Devī Māhātmyam: a Escritura que Exalta a Glória da Deusa
O Devī Māhātmyam (“A Grandeza da Deusa”) é um texto clássico do Markandeya Purāṇa, com 700 versos em 13 capítulos, que glorifica Durgā como a força suprema do universo — origem, sustentação e fim de tudo o que existe.
Também conhecido como:
Durga Saptashatī – “Os 700 versos sobre Durga”
Caṇḍī Pāṭha – “A recitação da Caṇḍī” (nome feroz da deusa)
É uma das escrituras centrais do Śākta Tantra, e sua recitação é especialmente comum durante o Navarātri.
Três narrativas, Três forças a vencer
Madhu e Kaiṭabha – representam a tamas (inércia, escuridão)
Mahīṣāsura – representa o rajas (ego, ambição, agitação)
Śumbha e Niśumbha – representam o equilibrio corrompido (orgulho espiritual)
Cada episódio mostra a Deusa assumindo formas diversas para restaurar o equilíbrio, vencendo não apenas forças externas, mas também as ilusões internas do ser humano.
या देवी सर्वभूतेषु शक्ति रूपेण संस्थिता।नमस्तस्यै नमस्तस्यै नमस्तस्यै नमो नमः॥
Yā Devī Sarvabhūteṣu Śakti Rūpeṇa Saṃsthitā
Namastasyai Namastasyai Namastasyai Namo Namaḥ
Àquela que habita em todos os seres como Śakti, reverência a Ela, reverência a Ela, reverência a Ela, infinitas vezes.
Durgā na Prática de Yoga: Arquétipo de Força e Verdade
Durgā nos convida a acessar a força que protege sem endurecer, que se impõe sem violência, que diz “não” sem culpa. Seu arquétipo pode ser evocado em momentos de decisão, transição ou quando precisamos de clareza para sair de ciclos de autossabotagem.
Na prática de Yoga, podemos nos conectar com essa energia por meio de:
Posturas como Devīāsana (postura da deusa) e Siṃhāsana (postura do leão)
Respirações como Bhastrikā, Kapālabhātī ou Cāṇḍālī Prāṇāyāma, que ativam o fogo interior
Meditações com o bīja mantra Dūṁ, vibrado no chakra do coração
Japa mantra: Om Dūṁ Durgāyai Namaḥ
🌙 Quer sentir essa força na prática?
As duas meditações — com o bīja mantra Dūṁ, vibrado no chakra do coração, e com o mantra Om Dūṁ Durgāyai Namaḥ — já estão disponíveis no Portal do Soma. São práticas para despertar a presença, dissolver o medo e se reconectar com a sua coragem essencial.
💬 Reflexão Final: Durgā Já Vive em Você
Não precisamos buscar Durgā fora. Ela já está em nós — na nossa firmeza diante do caos, na clareza que surge após uma tempestade emocional, no instinto de proteger aquilo que é sagrado.
Quando evocamos sua energia, não estamos pedindo que ela venha de algum lugar externo, mas reconhecendo e acessando a coragem, a presença e o discernimento que já existem dentro de nós.
Jaya Jaya Durgā!
Que você sempre se lembre da presença sábia que te habita — aquela que sabe quando agir, quando silenciar e quando confiar
Hariḥ Oṁ
Paty Abreu